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quinta-feira, 19 de novembro de 2009 Obstinação Indomável

Ricardo Cross-Kraemer Harmônico, ou Dinho C. K. H., era intrincadamente perseverante. E era perseverante por ser vaidoso. E era vaidoso por ter as sombrancelhas não-tão-bem separadas, havia uma ponte peluda e negra onde deveria haver apenas a curva do nariz. "Se a cara não ajuda, a fama tem de fazer o dobro do trabalho". Palavras de Ricardo.

Garoto obstinado, sem dúvida.

Tudo isso porque ele tinha colocado na cabeça que iria fazer o que muita gente nunca chegaria a imaginar que pudesse mover tamanha massa humana em prol de um único objetivo: resgatar a garantia de uma tevê.

Um objetivo.

Não era dos melhores, nota-se. Mas ele era obstinado, jovem, parcialmente calvo (mas só no topo da cabeça) e além de tudo, seu carisma fazia dele um bom negociador. Obviamente, o coordenador do setor administrativo da empresa faria isso num instante. Acontece que Ricardo não era mais o coordenador do setor administrativo da empresa. Ele havia perdido o emprego, e justamente por ter falhado nessa tarefa. Ricardo estava puto da vida. Acompanhemos:

-Oi, em que posso ajudar?
-Hehe... Ehr, oi, eu vim aqui antes e--
-Neeeeeeidê!
-Ah, você me reconhec--
-NEIDEEEEE!
-Escuta, eu só preciso d--
-NEIDÊ!
-Se ela não estiver, não tem problema eu volt--
-Só um momento, por favor.
Uma voz vinda de longe chega estridente, o tom exato que faria uma bagunça numa vidraçaria. Os ouvidos de Ricardo explodem a cara nota alta alcançada pelo esguio e admiravelmente ruidoso ser humano que é Neide. E daqui, todas as escalas parecem altas, altíssimas, astronômicas. Ricardo fica surdo de um ouvido:
-FALA, MENINA!
-O CARA AQUELE TÁ AQUI DE NOVO!
-O JEAN?
-NÃO, O CARA D--
-O SEGURANÇA?
-NÃO, NADA A VER... É UM CLIENT--
-OLHA, SE FOR O SEGURANÇA, MANDA ELE ESPERAR LÁ FORA QUE O MEU MARIDO AINDA TÁ AQUI!
-NÃO, O CARA DA TEVÊ!
-QUEM É QUE VEIO ME VER?!? FALA LOGO!
-O-CARA-DA-TE-VÊ!
-COMO ASSIM, DE ALGUM PROGRAMA? O PORTIOLI DA SBT?
-NÃO É, NÃO TEM NADA A V-- CARAMBA, NEIDE, VEM AQUI!
-O QUE É? O que é? Não tá vendo que eu tava faze-- Ah, maravilha... É o cara da tevê. Por que não me avisou logo, Lorení?
-Com licença, eu preciso--
-Eu tentei te falar, eu tent--
-Quando?
-Como?
-Quando?
-Quando o quê?
-Desculpem, mas eu--
-Quando tu me avisasse, mulher?
-Agora, agorinha, mas tu não me ouviu.
-Agora?
-Agora há pouco.
-Sim, mas então eu não ouvi.
-Sim, eu percebi.
-Mas então a culpa não é minha, nem tem como.
-Não disse isso... Eu só falei que eu tentei te falar e tu não me ouviu.
-Não, eu ouvi, mas não entendi, é diferente.
-É a mesma coisa, é a mesma coisa... Além disso, por que tu mencionou o segurança? O bonitinho, aquele...
-Ei, escutem, eu precis--
-Que segurança? Tu é que não entendeu direito, eu falei que--
-Eu ouvi bem, tu perguntando dele, se tinha vindo falar contigo e tarãrãn... Menina, ele é casado, viu! e tu também.
-Calaboca, guria, não fala besteira... Olha só, me acusando, me caluniando, onde já se viu?... Mas escuta, o que tu queria, afinal de contas?
-Ah, é mesmo!... Ei, aonde ele vai? Moço! MOÇO! Foi embora...

Ricardo desistiu, sabia que este dia iria chegar. E foi então, que, percebendo a impossibilidade de levar o caso adiante, Ricardo pensou: "Tudo isso só por causa de uma tevê? Eu nem assisto à tevê!".

Enquanto a chuva fina molhava seus óculos, pensava: "Eu estou pensando comigo mesmo demais, vou parar enquanto ainda estou são". E não pensou mais nisso pelo resto do dia.

Na saída, desolado por encontrar-se diante de seu primeiro fracasso, parou na porta. Carregava uma tevê analógica, grande e pesada. Estava chuviscando, o carro estava longe, longe demais para se carregar um televisor sem se molhar um pouco. Ricardo puto é uma coisa feia de se ver. Se torna desatento e irritadiço, propenso a erros estúpidos.

A chuva ficou mais forte. enquanto carregava a tevê, o fio escapou da sua mão e ele pisou em cima. O aparelho foi ao chão com força o bastante para quebrar a tela. Sem pestanejar, esticou a perna para chutar a tevê longe, no pico da ira. Perdeu o equilíbrio e caiu de costas no meio da avenida. Ele começou a chorar de desgosto. A tevê olhava para ele come se risse de sua ineficiência em se livrar dela. Dava pra ver seus transístores cheios de emoção para agradar a família inteira, seus circuitos eletrônicos criados especialmente para domar as crianças, seu coração programado para lavagem cerebral e doutrinação do espectador... Ela estava ali, estrebuchando. Mas ria de Ricardo, um teimoso patético.

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